sábado, março 28, 2009

Palimpsesto

Numa cena de "Madrid", de Basilio Martin Patino, o realizador alemão e o poeta local conversam no terraço de um prédio, olhando a cidade. O poeta representa os locais, o realizador os estrangeiros. A cena revela a fina e repetida ironia de serem os estranhos quem melhor capta a poesia dos lugares, quando muitas vezes nem os poetas locais a entendem:

- Gosto de vir aqui acima porque é de onde melhor se vê como é a cidade: irracional, feita a pinceladas, sempre inacabada. É curioso que seja obra de Filipe II, o Rei das geometrias.
- Eu gosto muito que seja assim, como que sem terminar, feita à medida do Homem.
- O curioso é que esta aldeola mourisca chegasse a ser capital de dois mundos. Isto é um acampamento sujo de trapaceiros, burocratas, sonhadores... O que aqui nunca houve foi uma cultura arquitectónica. Isto não passa de uma acumulação incontrolável de "bons vivants".
- Mas uma cidade também é os seus escritores, os seus artistas, e o seu gosto pela vida, pela comunicação...
- Não sei que encanto vês neste caos de improvisações...
- A mim agrada-me a imperfeição de Madrid. É o que lhe dá o seu encanto.

"Uma cidade é um nome, áspero ou cordial. Que factores humanos o determinam? Que influência tem a sua cenografia?" - reflecte o personagem/realizador mais adiante.

Talvez só os estranhos possam ver, porque os procuram, ecos do passado das cidades. Como se a leitura das palavras meio apagadas do manuscrito fossem imprescindíveis para a compreensão das palavras novas que nele se escrevem. Mas nesta infinidade de camadas, como delimitar o campo da procura e, por fim, compreender? Talvez se afigure impossível. Mas não será essa a fonte inesgotável do fascínio?

Sem comentários: