De um coevo da revolução do 5 de Outubro de 1910
"De volta de dois meses de férias nas doces margens do lago Léman, cheguei a Lisboa na véspera da revolução.
Poucas horas depois de um breve tiroteio de barricada no alto da Avenida e de um lacónico bombardeamento proveniente de uma insubordinação de marinheiros a bordo de um navio de guerra, proclamava-se, perante Lisboa atónita e, imediatamente depois, perante a passividade do país inteiro, o triunfo dos revolucionários.
Este desenlace quase incruento é em sua aparente superficialidade o trágico desmoronamento instantâneo de todo um velho mundo. É o reviramento, com o de dentro para fora e com o debaixo para cima, de uma sociedade inteiramente desarticulada. É uma nação ferida de morte na continuidade da sua tradição e da sua história. Assim o afirmam os triunfadores, principiando expressivamente por arrancar do pavilhão que cobria a nacionalidade portuguesa a coroa real, mais da nação que de qualquer rei (...).
Pobres homens, mais dignos de piedade que de rancor, os que imaginam que é com um carapuço frígio, talhado à pressa em pano verde e vermelho, manchado no lodo de uma revolta num bairro de Lisboa, que mais dignamente se pode coroar a veneranda cabeça de uma pátria em que se geraram tantos grandes homens, a cuja memória imperecível, e não aos nossos mesquinhos feitos de hoje em dia, devemos ainda os últimos gestos de consideração a que podemos aspirar no mundo! Pobre gente! Pobre pátria!
Ao antigo reino, assim desfeito com o mesmo leviano descuido com que as meninas de Lisboa desmanchavam puzzles num jogo à moda do Inverno passado, sucedeu-se o regime de um Governo Provisório, ao qual, creio que unicamente por serem republicanos os indivíduos que o constituem, se chamou «da República».
A indiscutível evidência é que em tal Governo não concorrem por enquanto nenhuma das cláusulas que assinalam um regime democrático. Falta-lhes como base essencial a anuência prévia da maioria das vontades; falta-lhes pacto fundamental; falta-lhes estatuto regulador da sua acção dirigente e falta-lhes sobretudo, nas suas formas de proselitismo, de apostolado e de conciliação patriótica, o íntimo sentimento de simpatia, de indulgência, de bondade, de liberdade, de fraternidade e de igualdade, que é a chave de todo o poder popular.
(...)
Não me parece, portanto - repito -, que o Governo Provisório de Lisboa seja mais autenticamente o prefácio de uma liberal República que o da mais despótica tirania.
(...)
Entre a monarquia constitucional parlamentar e república parlamentar constitucional não distingo diferença, nem considero que ela exista, a não ser historicamente, entre o princípio da eleição e o da hereditariedade, tendo eu por tão precários os acasos do voto como os do nascimento.
(...)"
Ramalho Ortigão, Janeiro de 1911
As Farpas II
O melhor e mais cáustico das Farpas vem depois, quando se descreve a desilusão e o descrédito da nova república, a pompa dos novos senhores ("o presidente novo em coche real, puxado a quatro por dezasseis relinchantes famílias aristocráticas"), a propaganda (Museu Republicano, um mausoléu de buiças, e a inacreditável apresentação ao ministro do Brasil da menina Deolinda Alves, de barrete e espada, como encarnação de récita da jovem república portuguesa), etc.
Sem comentários:
Enviar um comentário