domingo, abril 01, 2007

Grandes histriónicos

Alvoroço, confusão, estupefacção.
Trinta anos de doutrinação democrática e o povo ingrato cospe na mão que lhe deu de comer: Salazar escolhido como o maior português de todos os tempos. Mas que grande estucha!

Ou será?

O terreno escolhido para a disputa foi um programa de televisão e é precisamente na televisão que mais se fala e mostra Salazar. Não vale a pena entrar em marginais tipologias de audiência ou militâncias da mesma porque, para o efeito, simplesmente bastou-lhe estar definida como audiência.
Nos últimos trinta anos, nenhum outro governante português ou o seu regime foi mais analisado, documentado ou ficcionado pela estações televisivas. Nenhum político português foi tão invocado por outros, com propósitos variáveis, ou se tornou universal alvo de continuada exposição pública (Salazar, recorde-se, é por cá o primeiro governante da era deste meio de massas e, como tal, uma das primeiras estrelas mediáticas que o aparelho criou). Porque, como toda a gente sabe, nos meios de comunicação que vivem da imagem parecer mal ou parecer bem tanto faz, o importante é aparecer.

Apesar de morto, o homem continuou a pairar na sombra como anti-figura tutelar de um sistema político que o diabolizou sem ter conseguido desencantar um democrata que se afirmasse em alternativa credível; o regime democrático não se quis livrar da memória do ditador para melhor poder usá-la em seu proveito. Claro está que o mediatismo da criatura só pode ganhar quando a caricatura é usada para definir algo pela negativa. Mas aqui há uma lição a aprender: quem insiste que a legitimação das atitudes dos vivos parte de uma oposição às judiarias do morto, reafirma a presença do ditador e reconhece logo à partida que a sua influência se mantém. E só por isto já justificam eles mesmos a sua vitória.

Conclusão: mal o nome fosse proposto a concurso, já teria um enorme avanço sobre todos os demais candidatos antes de qualquer documentário de circunstância pois o seu tempo de antena começou há setenta anos atrás e nunca chegou a acabar de verdade.

Do outro lado do espectro político (ou talvez não), as personagens vitoriosas nas versões britânica e francesa desse programa foram Churchill e De Gaulle. Não será difícil de verificar que ali também a exposição pública permanente pelo próprio sistema onde que é feita a escolha contribuiu fortemente para as respectivas "eleições".

Depois há questão geracional dado que as coincidências daqueles líderes com Salazar não se limitam ao modelo do concurso.

Ambos os políticos estrangeiros se tornaram dirigentes das suas respectivas nações nos anos trinta e o que o regime por cá fez para enaltecimento da neutralidade do nosso ditador, fizeram em tempo de guerra os serviços de propaganda de todas as potências aliadas para glorificação dos líderes britânico e francês. A geração de portugueses, franceses ou ingleses que hoje perfaz mais de dois terços da população cresceu necessariamente com a noção de um chefe-guerreiro, forte, defensor da pátria e dos seus valores (e nem a adaptação aos tempos de paz trouxe maiores diferenças: ainda demoraram vinte anos para De Gaulle e os seus se aperceberem que a França não lhe pertencia por direito divino).

De Gaulle e Churchill acabaram em virtude da sua vitória na guerra por se tornar aqueles que definiram a idade moderna da Europa. Os povos do lado de cá da cortina de ferro viveriam décadas segundo as fronteiras e as leis por eles desenhadas. Da mesma forma, se o país que nos foi devolvido em 1974 era ainda aquele da neutralidade para o mundo e do isolamento em nós mesmos foi porque nas duas gerações formadas sob Salazar foi passado à pedra o atavismo onde ainda nos afundamos.

Os tempos são de incerteza, como intitulou António Barreto o livro que serve de base à série televisiva. E em tempos destes, os europeus perdidos voltam-se para a segurança das definições do passado com que foram educados e que são as últimas que acreditaram ser imutáveis.

2 comentários:

Ricardo Alves disse...

Nos anos 30, o De Gaulle era «dirigente» de quê?

Unknown disse...

Ok, ok... Ganhaste. Nos anos trinta seria apenas oficial-general do exército francês. Ministro da Guerra apenas em 1940.
Mas te garanto que não estava grávido ;)